terça-feira, 29 de novembro de 2011

Culpa e antigos amores

          Partindo do princípio de que tivemos nossos primeiros e fundamentais amores e que quando fizemos a passagem (ou não fizemos) para amores outros, estamos agora nos perguntando se haveria uma relação entre as dificuldades – os sofrimentos – amorosas e esses primeiros amores.  
          Haveria, além da culpa de desejar, uma culpa gerada pelo movimento de substituição desses primeiros e fundamentais amores pelos amores outros?
          Quais as relações entre desejo e amores?
          O outro, num primeiro momento, de uma maneira especial, e depois, no decorrer da vida, é fundamental na constituição daquilo que será o meu “eu”.
          Para que eu – um filhote humano sem defesas e sem condições de sobrevivência logo após meu nascimento – tenha podido manter-me vivo, foi preciso um outro que, bem ou mal, me amparou e cuidou de mim nestes primeiros tempos.
          Esse outro não me permitiu apenas sobreviver. Foi graças a ele que eu também me constitui como humano, ou seja, como ser de linguagem. Como tal, eu me constitui como quem se percebe tendo/sendo um “eu”, coisa que não se dá com o filhote dos animais.
          Esse “outro”, ao cuidar (ou descuidar) de mim, esperou e desejou coisas de mim e para mim. E eu as entendi como pude. Essas coisas, da maneira como eu as entendi, me marcaram, atuaram em mim como os primeiros fios que teceram meu psiquismo.
          Isso quer dizer que ao ser cuidado (ou descuidado) por um outro, eu recebo dele, também, as mãos que me amparam, os toques que me erotizam (ou não), os olhos que me olham (ou não), a maneira como me alimenta, me aquece, eu recebo junto o que esse outro espera de mim, pensa sobre mim, deseja ou não para mim. Isso faz marcas em meu corpo e em meu psiquismo. Essas duplas marcas, eu as recebo (sou submetida a elas) e as interpreto como posso. Isso quer dizer que, ao recordá-las, seguramente, haverá uma discrepância entre como se deram e como eu as registrei. Não há como ter um registro de como o outro foi “exatamente”.
          À medida que fomos crescendo e entendendo melhor as coisas, à medida que nossa linguagem e conseqüente compreensão das palavras ditas pelos outros foram aumentando, nós também fomos escutando muitas histórias sobre nós, sobre aqueles que cuidaram (ou não) de nós. Ou seja, nos contaram sobre isso. E nós, ao ouvirmos, imaginamos mais um bocado, ou seja, construímos “um filminho” de como aquilo pode ter se dado. É claro que nesse “filminho” nós somos os diretores. Ao construí-lo, mantemos fragmentos do que se passou, mas colorimos os fragmentos (e isso tem muito peso) e dispomos deles da maneira que podemos.
          Colorimos com as nossas fantasias.
          Pronto. Acrescentamos mais um fio. Tínhamos as marcas do outro, agora, junto com elas, nossa fantasia.
          Então, esse outro, que eu internalizo, que necessito e faço dele o material que me constitui, somado à minha fantasia, são os elementos que eu tenho até agora. Esses elementos me constituem. Eles são em si a minha primeira experiência amorosa.
          Marcada por essa experiência que me funda eu “internalizo” essas marcas e com elas construo meu “eu”. E vou levar isso para a vida. Vou viver minha vida sob essa construção.
          Há pelo menos duas maneiras de levar essa construção para um novo amor. Uma, eu internalizo esse “outro” fazendo de mim um o mais parecido com ele possível, idealizando-o como um modelo perfeito, eu o amo na repetição. Repetindo-o, mantenho-me presa nesse amor primeiro, fechada nele, não vou amar um amor novo.
          Outra, eu internalizo esse “outro” fazendo de mim um oposto dele, odiando-o como modelo, procurando viver o oposto dele, rechaçando-o na oposição, o que não passa de uma outra maneira de repeti-lo, ao avesso. Rechaçando-o, mantenho-me presa nesse amor primeiro, fechada nele, não vou amar um amor novo. 
          Como não repeti-lo?
          Ao internalizá-lo, nos alienamos no outro. Alienados – presos no outro, perdidos no outro – nossa relação com ele será sempre a de uma dívida. Dívida que gera culpa. Culpa que nos leva a, por termos necessitado dele um dia, repeti-lo, como se isso fosse gratidão e amor, ou repeli-lo, como se não suportássemos essa marca do outro em nós.
          Tanto uma quanto outra posição é bastante desastrosa na vida. São posições sustentadas na culpa. E que depois são transferidas para parceiros amorosos, que vêm assumir o lugar desse primeiro outro que me constituiu.
          Necessário se faz separar desse outro que me constituiu. Sair da alienação nele para a separação dele.
          Amorosamente aceitar que esse outro me permitiu viver e apenas amá-lo. Distanciar-me desta dívida, imaginária, que me faz pensar que, sendo como ele, estarei retribuindo com amor.
          Deixar de repetir porque um dia (e ainda) me sinto culpado por ter discordado, criticado, por ter me diferenciado desse outro- “matriz”.
          Deixar de repeti-lo como se eu fizesse um pedido eterno de desculpas. “Hoje eu te repito para te dizer que te amo apesar da maneira que você se coloca na vida e que eu nunca achei legal”. Mas eu sofro, como você (sofre ou sofreu) para reverenciá-lo, para saldar minha dívida eterna com você.
          Sofro e nas minhas relações amorosas de hoje eu ofereço isso que tenho para dar: meu sofrimento.
          Sofro e peço em troca, ao meu parceiro, que se sinta culpado e sofra também.
          Sinto culpa por desejar, sinto culpa por substituir amores primeiros.
          Como pensar o amor fora da culpa, amor que não é vestimenta para a dívida, nem para o ódio?


Elisabeth Almeida
(com a colaboração de Ana Paula G.Garcia)
A partir das discussões de 15 de novembro de 2011.

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